Comentando o Jazz

       ..."Nunca tocamos uma vez da mesma forma"... 
                                                                            Shelley Manne

       ..."Eu toco cada passagem como se fosse a última"...
                                                                             Chet Baker
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    Alguém já disse que é muito mais fácil entender uma determinada coisa a ter que defini-la?

    O Jazz é assim.

    Melhor do que tentar defini-lo, sintetizá-lo em poucas palavras ou emoldurá-lo em uma frase acadêmica, será estudar a sua história, as suas origens, as influências que fermentaram o seu desenvolvimento, as suas mutações através da areia do tempo. Importante é apreciar a sua beleza melódica, vibrar com o seu ritmo preciso, decifrar a sua harmonia particularíssima.

    Tudo isto contribuirá para sentir e entender o Jazz.

    E, através da História, depreendemos que o Jazz surgiu de uma forte miscigenação de culturas, africana e européia, caldeadas em um ambiente de grande atividade de trabalhos aturados, de sofrimentos intensos e de sentimentos feridos.

    Transcrevemos aqui uma feliz observação do escritor, estudioso de Jazz e notável Músico Gunther Schuller sobre o Jazz, que achamos muito oportuna: "Deve-se notar que até hoje numerosos negros - talvez a maioria - consideram o Jazz como um meio de comunicação pessoal, se não secreta, com membros de sua própria raça".

    O Jazz, fundamentalmente, funde-se com a alma do povo, o que o torna verdadeiramente uma música popular. E, como tal, sujeita-se e adapta-se às mesmas regras e regulamentos de toda música, no seu geral.

    Após todas aquelas atribulações, onde participaram neste amálgama musical a Marcha, o Blues, o Ragtime, o Gospel, o Spiritual, etc., oferecendo-nos como produto final o Jazz, este cristalizou-se e definiu-se segundo um padrão musical que, doravante, caracterizou a concepção jazzística.

    Toda música, assim como o Jazz, identifica-se pela melodia, que pode ser compreendida como uma seqüência lógica musical. Porém, uma sucessão de sons logicamente musicais, para formar uma melodia, requer necessariamente de um ritmo. Sem um ritmo, a melodia não fica configurada. O conceito de ritmo, no homem, é inato e intuitivo, estando intimamente estigmatizado às batidas de seu coração.

    E o ritmo, na melodia, é a maneira como se repetem os valores da música, ou é a pulsação das batidas da mesma. Estas pulsações acentuadas formam os compassos, no Jazz designados por bars.

    Aliado a isto tudo, existe o andamento, que efetivamente define a velocidade com que a música possa desenvolver-se. E há vários andamentos, desde os mais lentos até os mais apressadinhos.

    Interessante é notar, ao ouvirmos o Jazz, as alterações no ritmo estabelecido, através de deslocamentos da acentuação normal do compasso. São os contratempos ou as síncopas.

    Estas alterações, que agem no andamento rítmico musical como um fator inesperado, excita pela surpresa e traz à música um balanço instintivamente agradável.   

    No Jazz, as bandas são formadas por divisões de agrupamentos Instrumentais, chamadas de seções. Em número de quatro, as seções, tradicionalmente, são definidas como: Trompetes, Trombones, Palhetas e Percussão.

    O ritmo é um conceito fundamental em uma banda de Jazz, onde a sua base rítmica é formada, basicamente, pela Bateria, pelo Contrabaixo e pelo Piano. À esta base rítmica, chamada também de tripé rítmico da banda , acrescenta-se às vezes a guitarra.

    A Bateria, por si só, determina o caráter rítmico da melodia, arrastando atrás de si toda a banda. Ela sincretiza a atuação simultânea de vários outros instrumentos percussivos, antes usuais separadamente nas bandas de Jazz ambulantes: o Bombo, as Caixas e os Pratos.

    O Bombo da Bateria promove a batida fundamental no compasso 4/4, reforçando os tempos 1 e 3, porém o faz através de uma síncopa na segunda batida, enquanto os pratos, que o acompanha, intervém nos tempos débeis 2 e 4.

    As Caixas, por sua vez, promovem uma cadência no acompanhamento e propicia um diálogo com o Bombo e os Pratos. Aliás, no Jazz vamos presenciar, freqüentemente, o aparecimento deste conceito pergunta/resposta, entre os vários instrumentos musicais.

    O Contrabaixo é o sucessor da Tuba, muito usada no início do Jazz. No tempo das marchas, a Tuba atuava sobre os tempos fortes dos compassos, efetuando aqueles conhecidos efeitos sonoros de hum-pá, hum-pá, hum-pá ... Passou a atuar no Jazz da mesma maneira, porém através de uma marcação sincopada. O Contrabaixo, por sua vez, acompanha a bateria assim como procedia a Tuba, definindo os níveis tonais da melodia.

    Quando o Contrabaixo toca uma nota para cada tempo, tem-se a impressão de que ele caminha sobre a canção, daí chamar-se este procedimento de walking bass ou walk the bass.

    A conjunção de Bateria e Contrabaixo promove o swing do Jazz.

    O Piano acompanha à Bateria e ao Contrabaixo, dando beleza musical ao ritmo. Foi Count Basie quem conseguiu desvincular, de certa maneira, o Piano do ritmo da banda, dando-lhe maior capacidade solista.

    A Guitarra, quando solicitada, acompanha o Contrabaixo, em registro tonal mais agudo, intermediando acordes de passagem.

    No tripé rítmico da banda observa-se um interessante contraponto, onde o Piano e a Bateria oferecem perguntas e o Contrabaixo as responde, tudo em termos musicais.

    Apoiados na base rítmica da banda, seguem os desempenhos dos demais instrumentos musicais.

    O Trompete é o principal instrumento solista da banda, equivalendo ao violino, na orquestra sinfônica.

    O primeiro Trompete, que é um Lead Man na banda, executa a melodia e faz a parte principal da linha melódica. Os segundo e terceiro Trompetes, atuam reforçando a melodia e fazendo a harmonia. Normalmente, o segundo Trompete improvisa fraseados ou imprime ao instrumento um caráter rítmico, imitando batidas percussivas com os seus toques, curtos e definidos.

    É o diálogo estabelecendo-se, novamente!

    A Clarineta comparece no Jazz executando também a melodia, em um registro mais agudo, ou então enfeita a melodia com ornamentos com tonalidades altas. Igualmente, as outras palhetas atuam de forma similar.

    Já o trombone, executa uma versão da melodia, em nível mais grave e mais suave, denominado de contracanto, ou então produz frases rítmicas de reforço.

    Constatamos, pois, que os instrumentos musicais no Jazz, assim como em outras modalidades musicais, desenvolvem um constante diálogo entre eles. Além disso, executam uma polifonia, que se traduz como a maneira de tocar mais de uma melodia ao mesmo tempo, empregando-se registros diferentes. As melodias que fazem parte de uma polifonia, são denominadas linhas contrapontísticas.

    Encarando a polifonia no Jazz, vamos caracterizar a Clarineta executando uma linha contrapontística em registro mais agudo e notas mais rápidas. Já o Trompete, assume uma linha de registro médio e notas um pouco mais longas. E o Trombone, utiliza uma linha de registro mais grave, com notas ainda mais longas. Basicamente, é isto o que acontece.

    Estes três instrumentos musicais bem definem, no Jazz, as suas polifonias e as suas características de linhas contrapontísticas. De uma maneira geral, nunca se pode esquecer que o instrumento musical apresenta sempre duas funções operacionais:

        1. Executar a melodia ou um contracanto complementar à mesma;

        2. Interpretar uma parte rítmica da melodia.

    Isto é válido para qualquer modalidade musical, principalmente para o Jazz.

    Há, ainda, outras evidências ocorrentes no Jazz, ainda que não exclusivas a ele, mas que identificam-no por causa de sua constância ou pertinência necessária. Apresentamos a seguir.

    Improvisação. Se formos analisar antigas Escolas Musicais, vamos encontrar tipos de improvisações melódicas, desde o período Barroco. Nos concertos, a improvisação é chamada de cadenza, onde o solista encontra espaço para demonstrar o seu virtuosismo, porém obediente ao estabelecido em partitura.

    Exemplos patentes de improvisação vamos perceber em vários trabalhos de J. S. Bach, que ensejava espaços convidativos aos improvisos. E W. Mozart, verdadeiro fenômeno musical, através de sua imensa criatividade, era um exímio improvisador, sobre temas apresentados.

    O Jazz também concede amplas oportunidades para as improvisações, com muito mais liberdade e com a vantagem de, além do trabalho improvisativo de um solista, permitir condições para uma improvisação coletiva ou grupal.

    A improvisação jazzística não é aleatória (salvo em determinadas concepções jazzísticas), mas obediente a medidas determinadas de compassos, denominadas chorus, assunto abordado mais adiante.

    Groove. Coordenação de vários ritmos diferentes, no desenvolvimento da melodia. Trata-se de uma alternância da batida, deslocando o tempo forte durante a sua execução. Arriscamos afirmar que o groove corresponde a uma improvisação do ritmo.

    Tailgating. Estilo de glissando jazzístico, utilizado pelo Trombone de Vara. É aquela maneira preguiçosa do Trombone fazer deslizar nota após nota, dolentemente. A origem da palavra está contida na Seção Baú e vale a pena conhecê-la!

    Riff ou Riff Chorus. Frase musical que se repete várias vezes, no desenvolvimento de uma melodia jazzística. Oriundo do Blues, era um recurso muito usado desde o tempo do Jazz ambulante, sendo bastante empregado, posteriormente, nas décadas de 20 e 30. O Riff incorpora à melodia um balanço rítmico assaz acentuado e um recorte de significativa beleza. Posteriormente, por causa do seu uso em demasia, perdeu o seu poder de recurso e expediente orquestral, tendo o seu emprego diluído-se sobremaneira.

   Break. Breque, parada ou ruptura temporária. Traduz-se como uma pequena e eventual parada da banda, gerando uma pausa, espaço este ocupado por uma curta improvisação de um músico solista.

   Chorus. No Jazz, as composições são, geralmente, formadas por 32 compassos (bars), divididos em quatro seções ou blocos, possuindo 8 compassos cada seção. Graficamente, podem ser assim representado:

chorus

    A execução da melodia desenvolve-se conforme o gráfico. Realiza-se a seção A, repete-se a seção A, passa-se a seção B e finaliza-se com a seção A, percorrendo um chorus de 32 compassos.

    O bloco intermediário B , único diferente dos outros, é denominado Bridge ou Ponte e está cinco graus na tonalidade acima de A. A Ponte serve de ligação entre as duas seções iniciais e a seção final da linha melódica.

    Transcorridos todos os blocos ( A - A - B - A ), diz-se que se completou um chorus da música. Outros chorus poder-se-ão repetir, como um chorus de trompete, um chorus de trombone, um chorus de saxofone, e assim por diante. Poderemos ter até um ensamble chorus, empreendido por todos os instrumentos musicais da banda. Usualmente, o primeiro e o último chorus são temáticos e os intermediários são improvisativos.

    O Blues apresenta, como forma, uma estrutura um pouco diferente da comentada anteriormente. Ele, normalmente, é composto por doze compassos, em três seções com quatro compassos cada, distribuídos da seguinte maneira:

blues

    Três acordes básicos formam um Blues. O acorde I, fundamental, o acorde IV, quatro graus de tonalidade acima do acorde I e o acorde V, cinco graus de tonalidade acima do acorde I .

    Na primeira seção, a melodia percorre quatro compassos do acorde fundamental I . Passa-se em seguida à segunda seção, esta formada por dois compassos do acorde IV e dois compassos do acorde I . Cumprida a passagem intermediária, a melodia avança à terceira e última seção, formada por um compasso executando o acorde V, um compasso do acorde IV e dois acordes do compasso I, finalizando um chorus de doze compassos.

    Outros chorus repetir-se-ão, conforme e da maneira já comentada para a melodia jazzística de trinta e dois compassos.

    Estas são as formas como, tradicionalmente, o Jazz é executado, descritas de uma forma bastante simples e elementar. Há, entretanto, inúmeras outras modalidades, no que concerne a livres improvisações, estruturas de harmonias modais, etc., que estão além dos nossos comentários. Estes conceitos apresentados, se não definem técnica e academicamente a complexidade da arquitetura do Jazz, pelo menos procura trazer uma lucerna no sentido de seu entendimento.

    Na origem de sua simplicidade, o Jazz guarda as suas raízes das coisas mais íntimas do povo e reflete sempre os seus sentimentos e seu estados de espírito. Por estas razões, o Jazz é, verdadeiramente, uma autêntica forma de arte popular.

    Porém, qualquer que seja a tendência, qualquer que seja o arranjo, a instrumentação empregada ou outros atributos considerados, o músico executante, qualquer que seja ele, não deve jamais esquecer: a base do Jazz sempre deverá ser o Blues e o Swing.

    Isto é fundamental !